Duna (2021) – A Grandiosidade Reimaginada por Denis Villeneuve
A adaptação cinematográfica de “Duna”, a monumental obra de ficção científica de Frank Herbert publicada em 1965, sempre foi considerada uma tarefa hercúlea em Hollywood. A complexidade de seu universo, repleto de intrigas políticas, ecologia profunda, misticismo religioso e filosofia, desafiou cineastas por décadas. Tentativas anteriores, como o ambicioso projeto não realizado de Alejandro Jodorowsky e a controversa versão de David Lynch em 1984, apenas reforçaram a aura de “inadaptável” do livro. Coube a Denis Villeneuve, um diretor já aclamado por sua maestria em ficção científica contemplativa e visualmente impactante, como demonstrado em “A Chegada” e “Blade Runner 2049”, aceitar o desafio. Com “Duna” (2021), Villeneuve não apenas entrega uma adaptação fiel e respeitosa, mas também um espetáculo cinematográfico de proporções épicas, uma verdadeira ópera espacial para uma nova geração.
O filme nos transporta para um futuro distante, onde casas nobres disputam poder e recursos pelo universo. A narrativa centra-se na Casa Atreides, liderada pelo nobre Duque Leto (Oscar Isaac), que recebe a incumbência de administrar o hostil planeta desértico Arrakis, conhecido como Duna. Este planeta árido é a única fonte da “melange”, uma especiaria misteriosa e extremamente valiosa, essencial para viagens interestelares e para o desenvolvimento tecnológico e mental. Acompanhamos de perto a jornada de Paul Atreides (Timothée Chalamet), filho do Duque e de sua concubina, Lady Jessica (Rebecca Ferguson), uma adepta da misteriosa ordem Bene Gesserit. Enquanto os Atreides tentam se estabelecer em Arrakis e entender seus perigos e segredos, incluindo os colossais vermes da areia e a cultura dos Fremen, o povo nativo do deserto, uma teia de conspiração tecida pela rival Casa Harkonnen, liderada pelo grotesco Barão Vladimir (Stellan Skarsgård), ameaça destruí-los. Paul, assombrado por visões enigmáticas e treinado nas artes de combate e nas disciplinas mentais das Bene Gesserit, descobre-se no centro de antigas profecias que podem mudar o destino não apenas de Arrakis, mas de todo o universo conhecido.
Villeneuve demonstra uma compreensão profunda do material original, optando por dividir a narrativa do primeiro livro em duas partes, uma decisão crucial para permitir que a história respire e que o espectador seja imerso gradualmente na complexidade de Duna. O roteiro, coescrito por Villeneuve, Jon Spaihts e Eric Roth, consegue simplificar certos conceitos sem sacrificar a essência da obra de Herbert, focando na jornada de Paul e na apresentação das dinâmicas políticas e culturais centrais. A direção de Villeneuve é marcada por um ritmo contemplativo, que valoriza a construção atmosférica e a grandiosidade dos cenários. A imensidão desértica de Arrakis é quase um personagem em si, magnificamente capturada pela fotografia de Greig Fraser, que utiliza uma paleta de cores terrosas e uma escala monumental para criar imagens de beleza estonteante e opressora. Cada quadro é meticulosamente composto, transformando o planeta num lugar simultaneamente perigoso e fascinante.
Complementando o visual deslumbrante, a trilha sonora de Hans Zimmer é outro pilar da experiência. Afastando-se de suas composições mais tradicionais, Zimmer cria paisagens sonoras tribais, etéreas e por vezes assustadoras, utilizando instrumentos incomuns e vocais guturais que evocam a natureza alienígena e ancestral de Arrakis e de suas profecias. O design de produção é igualmente impressionante, desde as naves colossais e a arquitetura brutalista até os trajes detalhados e os icônicos destiltrajes dos Fremen, que permitem a sobrevivência no deserto.
O elenco estelar entrega performances sólidas. Timothée Chalamet encarna com sucesso a transição de Paul, de um jovem nobre inseguro para uma figura messiânica em potencial, carregando o peso do destino em seus ombros. Rebecca Ferguson é magnética como Lady Jessica, transmitindo a força, o medo e o amor maternal de sua personagem complexa. Oscar Isaac confere dignidade e nobreza ao Duque Leto, enquanto Stellan Skarsgård personifica a ameaça visceral e a crueldade do Barão Harkonnen. Jason Momoa e Josh Brolin adicionam carisma e presença como os guerreiros leais Duncan Idaho e Gurney Halleck, respectivamente. Embora alguns personagens secundários, como o Dr. Yueh (Chen Chang), possam parecer subdesenvolvidos devido às necessidades da adaptação, o conjunto funciona harmoniosamente.
“Duna” de Denis Villeneuve é, acima de tudo, uma experiência cinematográfica imersiva e sensorial. É um filme que exige ser visto na maior tela possível, para que sua escala e beleza visual sejam plenamente apreciadas. Ao focar na construção do mundo e na apresentação dos conflitos centrais, o filme estabelece as bases de forma magistral, culminando em sequências de ação impactantes, mas sempre servindo à narrativa e ao desenvolvimento dos personagens. Embora funcione como a primeira metade de uma história maior, deixando o espectador ansioso pela continuação, “Duna” se sustenta como um épico de ficção científica grandioso e inteligente, que honra o legado de Frank Herbert e reafirma o talento de Villeneuve como um dos grandes contadores de histórias visuais de nosso tempo. É uma obra que equilibra espetáculo e substância, explorando temas atemporais de poder, fé, ecologia e destino humano em uma escala cósmica.
Duna no Cinema: Um Duelo de Visões entre Lynch (1984) e Villeneuve (2021)
A saga literária “Duna”, de Frank Herbert, representa um marco na ficção científica, um universo vasto e complexo que desafiou as tentativas de adaptação cinematográfica por décadas. Duas versões se destacam nesse histórico: a controversa e idiossincrática obra de David Lynch, lançada em 1984, e a aclamada e épica visão de Denis Villeneuve, cuja primeira parte chegou aos cinemas em 2021. Comparar essas duas adaptações não é apenas analisar filmes distintos, mas contrastar abordagens radicalmente diferentes de um mesmo material fonte, refletindo as visões de seus diretores, as limitações e possibilidades de suas respectivas épocas e as próprias complexidades inerentes à transposição do universo de Herbert para a tela.
David Lynch, egresso do sucesso de “O Homem Elefante”, foi uma escolha improvável para “Duna”, admitindo não conhecer a obra e não ter particular interesse em ficção científica. Sua versão de 1984 carrega inegavelmente sua assinatura autoral: é um filme visualmente barroco, por vezes grotesco, repleto de elementos surreais e oníricos que, embora fascinantes para admiradores de seu estilo, contribuíram para alienar parte do público e dos críticos da época. A produção foi notoriamente conturbada, marcada por interferências do estúdio e cortes drásticos que reduziram a visão original de Lynch, levando-o a renegar o filme. Como aponta a crítica do Plano Crítico, Lynch tentou abarcar a vasta mitologia do livro, mas o resultado foi uma narrativa confusa, dependente de narrações expositivas e pensamentos vocalizados que, paradoxalmente, tornaram a trama ainda mais hermética para os não iniciados. Roger Ebert, em sua crítica demolidora, classificou-o como “uma bagunça incompreensível, feia e desestruturada”.
Em contrapartida, Denis Villeneuve abordou “Duna” como um projeto de paixão, sendo um admirador declarado da obra de Herbert. Sua experiência prévia com ficção científica de grande escala (“A Chegada”, “Blade Runner 2049”) o posicionou como uma escolha mais natural. A principal decisão estratégica de Villeneuve foi dividir o primeiro livro em duas partes, permitindo que a narrativa complexa respirasse. Sua direção é marcada por um tom mais sóbrio, contemplativo e imersivo, focando na construção gradual do mundo e na jornada de Paul Atreides. O roteiro, embora simplifique certos aspectos, busca fidelidade à essência e aos temas centrais do livro, tornando a história mais acessível sem perder a profundidade, como observado pela crítica do AdoroCinema. O resultado é uma obra coesa, com uma visão clara e um controle criativo evidente, que busca traduzir a grandiosidade do material original.
Visualmente, as diferenças são gritantes e refletem as tecnologias e estéticas de cada período. O “Duna” de Lynch, apesar das críticas aos efeitos especiais (considerados datados por Ebert), possui um design de produção único e memorável, com cenários práticos detalhados e uma fotografia sombria assinada por Freddie Francis, que lhe conferem um charme cult. A estética é mais operística e teatral. Já o “Duna” de Villeneuve é um espetáculo visual moderno, beneficiado por CGI de ponta integrado de forma orgânica. A fotografia de Greig Fraser captura a escala monumental de Arrakis com um realismo impressionante, criando imagens de beleza desoladora e imponente. O design de produção busca um funcionalismo crível, contribuindo para a imersão no universo. A trilha sonora de Hans Zimmer, pulsante e atmosférica, complementa perfeitamente a grandiosidade visual, enquanto a trilha de Toto e Brian Eno para a versão de 1984, embora interessante, contribui para a sensação de estranheza oitentista.
No que tange à adaptação da trama e personagens, a abordagem de Villeneuve, ao dividir a história, permite um desenvolvimento mais aprofundado das motivações e relações, especialmente de Paul (Timothée Chalamet) e Lady Jessica (Rebecca Ferguson), cujas performances foram amplamente elogiadas. O elenco estelar entrega atuações contidas e eficazes. A versão de Lynch, ao tentar condensar tudo, sacrifica o desenvolvimento de personagens, que muitas vezes parecem perdidos em meio à trama apressada e confusa, como apontado por Ebert. Seu elenco, embora repleto de nomes fortes como Kyle MacLachlan, Francesca Annis e Kenneth McMillan (cujo Barão Harkonnen é inesquecivelmente repulsivo), sofre com a estrutura fragmentada.
A recepção das duas obras espelha suas naturezas distintas. O filme de Lynch foi um fracasso crítico e comercial em seu lançamento, mas adquiriu status de cult ao longo dos anos, apreciado justamente por sua estranheza e ambição visual, ainda que falha como adaptação direta. O filme de Villeneuve, por outro lado, foi um sucesso retumbante, aclamado pela crítica e pelo público, incluindo muitos fãs do livro, sendo considerado por muitos a adaptação definitiva (ou ao menos, a primeira parte dela) que o material original merecia.
Em suma, “Duna” (1984) e “Duna” (2021) são criaturas cinematográficas fundamentalmente diferentes. A versão de Lynch é um artefato fascinante, uma visão autoral idiossincrática que, apesar de seus problemas narrativos e de adaptação, oferece uma experiência visual única e perturbadora, um testemunho das dificuldades de traduzir Herbert e das idiossincrasias de seu diretor. A versão de Villeneuve é uma adaptação mais fiel, acessível e tecnicamente impecável, um épico grandioso que consegue capturar a escala e a complexidade do universo de Herbert com maestria e respeito, preparando o terreno de forma sólida para sua conclusão. Cada filme, à sua maneira, contribui para o complexo legado de “Duna” no cinema, oferecendo perspectivas contrastantes sobre um dos mundos mais ricos da ficção científica.
Denis Villeneuve: Um Breve Perfil do Cineasta por Trás de Duna
Denis Villeneuve, nascido em Quebec, Canadá, em 1967, consolidou-se como um dos cineastas mais respeitados e influentes de sua geração, especialmente conhecido por sua habilidade em dirigir filmes de ficção científica complexos e visualmente impressionantes, como a recente adaptação de “Duna” (2021) e sua sequência “Duna: Parte Dois” (2024).
Sua carreira começou no cinema quebequense, onde dirigiu dramas aclamados como “Maelström” (2000) e “Polytechnique” (2009). No entanto, foi com “Incêndios” (2010) que Villeneuve ganhou projeção internacional, recebendo uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Este sucesso abriu as portas para Hollywood, onde ele rapidamente demonstrou sua versatilidade dirigindo thrillers intensos e atmosféricos como “Os Suspeitos” (2013), “O Homem Duplicado” (2013) e “Sicario: Terra de Ninguém” (2015), todos recebidos com elogios da crítica.
A fase mais recente de sua carreira é marcada por uma imersão profunda na ficção científica. “A Chegada” (2016), uma exploração inteligente sobre comunicação extraterrestre, rendeu-lhe uma indicação ao Oscar de Melhor Diretor. Em seguida, enfrentou o desafio de dirigir “Blade Runner 2049” (2017), uma sequência visualmente deslumbrante para o clássico cult. Seu trabalho mais ambicioso até o momento é a adaptação da monumental obra de Frank Herbert, “Duna”, dividida em duas partes (2021 e 2024), que se tornaram sucessos de crítica e público, solidificando sua reputação como mestre do gênero.
O estilo de Villeneuve é caracterizado por uma forte atenção à atmosfera, um ritmo muitas vezes contemplativo e uma escala visual grandiosa. Seus filmes frequentemente exploram temas profundos como trauma, identidade e a condição humana, envoltos em narrativas tensas e visualmente marcantes. Ele é reconhecido por sua capacidade de equilibrar espetáculo cinematográfico com substância intelectual, criando mundos imersivos e instigantes.
AVALIAÇÃO DA IMDb