2073 | Asif Kapadia

2073

2073: Quando o futuro não é um alerta, mas uma sentença

O cinema distópico sempre funcionou como um espelho torto do presente — exagerando tendências perigosas para nos alertar sobre o que pode vir. Mas o novo filme de Asif Kapadia, 2073, vai além. Ele não tenta prever um possível colapso: ele parte do princípio de que o colapso já aconteceu.

Misturando documentário e ficção, 2073 é uma experiência audiovisual intensa, que combina imagens de arquivo, computação gráfica e uma narrativa especulativa. A atriz Samantha Morton interpreta Ghost, uma sobrevivente quase muda em um mundo devastado. São 37 anos após um evento cataclísmico, nunca nomeado, mas com causas dolorosamente familiares: crise climática, autoritarismo, vigilância digital, colapsos sanitários e crises migratórias.

Uma Distopia Montada com Fragmentos do Nosso Presente

Kapadia, conhecido por documentários como Amy e Senna, recicla sua habilidade de construir tragédias anunciadas. Aqui, ele amplia a escala. Por meio da voz frágil de Ghost, somos conduzidos por um fluxo de imagens reconhecíveis demais: líderes autoritários, desastres climáticos, brutalidade policial, magnatas da tecnologia e memes virais. Tudo isso embalado por um futuro que parece já estar entre nós.

Há manipulações sutis — como um letreiro da Times Square que celebra os 30 anos de presidência de Ivanka Trump — mas o impacto maior vem daquilo que não precisa ser editado. A realidade, por si só, é suficiente para criar o horror. É nesse ponto que a ficção funciona como moldura para um documentário assustadoramente real.

Ecos de “La Jetée” e o Colapso como Narrativa

Inspirado no clássico francês La Jetée, 2073 adota uma estrutura fragmentada. Não há explicações lineares, mas flashes e sensações que constroem um mosaico caótico. A trilha sonora de Antonio Pinto e as referências visuais à ficção científica clássica — como Blade Runner — criam uma estética familiar, que por vezes suaviza o choque da mensagem. Mas será que isso reduz o impacto do alerta?

Entre o Choque e a Paralisia

2073 não se limita à especulação: traz nomes como a jornalista Maria Ressa e a escritora Carole Cadwalladr para conectar os pontos entre desinformação, manipulação tecnológica e autoritarismo crescente. A crítica, no entanto, é dividida. Enquanto uns chamam o filme de necessário, outros o veem como paralisante.

A Variety alertou que apresentar a distopia como um fato consumado pode causar mais resignação do que reação. O excesso de ameaças interligadas — IA, colapso ambiental, vigilância e populismo — gera uma sensação de impotência. Ghost nos diz: “É tarde demais para mim, mas talvez não seja tarde demais para você.” Mas será mesmo?

O Futuro Já Chegou — E Ele Não é Bonito

2073 pode ser classificado como um “agitprop” moderno — propaganda de agitação para um mundo que talvez já não queira mais ouvir. É um filme difícil, denso e provocativo, que levanta mais perguntas do que respostas. Sua maior virtude é escancarar o que muitos preferem ignorar: o futuro não é um ponto distante, ele é o resultado direto das escolhas que fazemos hoje.

Diretor Asif Kapadia

O diretor de 2073 é Asif Kapadia, cineasta britânico reconhecido por seu estilo singular que combina narrativa documental com elementos emocionais intensos e forte impacto visual. Kapadia ganhou projeção internacional com documentários como Senna (2010), que retrata a vida e carreira do piloto brasileiro Ayrton Senna; Amy (2015), sobre a trajetória da cantora Amy Winehouse, filme que lhe rendeu o Oscar de Melhor Documentário; e Diego Maradona (2019), centrado na vida do astro do futebol argentino. Em 2073, Kapadia expande sua linguagem ao fundir ficção científica distópica com imagens reais, criando uma obra híbrida que desafia os limites entre o real e o especulativo. Ao adotar essa abordagem, o diretor reforça sua vocação para construir narrativas sobre o colapso — seja ele pessoal ou civilizacional —, e convida o espectador a refletir não apenas sobre o que pode acontecer, mas sobre aquilo que já está em curso.

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