E se todo mundo virasse… um só?

Imagine acordar e descobrir que todas as pessoas ao seu redor — vizinhos, colegas, estranhos na rua — agora compartilham uma única mente. Zero privacidade. Zero identidade. Zero livre-arbítrio. Todo mundo fundido em um único “nós”. E você? Fora desse sistema. Um glitch humano no meio de uma rede telepática planetária.

Esse é o ponto de partida de Pluribus, nova série da Apple TV+, dirigida por ninguém menos que Vince Gilligan, o mestre das espirais de caos moral de Breaking Bad e Better Call Saul. Aqui, Gilligan deixa de lado o crime e mergulha sem dó na ficção científica paranoica — e, sinceramente, funciona assustadoramente bem.

A palavra Pluribus, de origem latina, significa “de muitos” ou “entre muitos”, e a série explora exatamente isso: o momento em que os “muitos” deixam de existir.

Pluribus e o sabor de sci-fi dos anos 90

O primeiro episódio acena para aquele clima nostálgico dos filmes de ficção científica dos anos 90: laboratórios minimalistas, antenas gigantes apontadas para o céu e cientistas obcecados por sinais inexplicáveis. Uma equipe detecta um sinal quaternário — nada de código binário; estamos falando de um padrão impossível, claramente não humano.

Esse sinal, quando decodificado, revela uma espécie de “receita laboratorial”. É o tipo de premissa que poderia facilmente virar uma bobagem tecnocósmica… mas Gilligan segura a rédea com firmeza.

E, claro, onde tem laboratório experimental, tem gente fazendo besteira. Um rato infectado, uma mordida não tratada com cuidado, e pronto: a cientista responsável vira a paciente zero. Não demora muito para o contato físico se tornar a forma de contágio que transforma pessoas comuns em partes de um organismo mental coletivo.

Sim, é um vírus. Mas também é outra coisa.

Contaminação, caos e a última mente livre

A disseminação acontece depressa, quase rápido demais para o cérebro processar. Em poucas horas, a cidade começa a agir como um único corpo. Pessoas caminham de forma sincronizada, falam em uníssono e parecem seguir um tipo de “protocolo invisível”. É como assistir a uma coreografia macabra improvisada em tempo real.

E aí entra nossa protagonista: uma escritora, completamente alheia ao mundo científico, mas que se torna a única pessoa imune ao contágio. Não por genética especial, não por mágica — apenas azar (ou sorte?) do destino.

Isolada no meio do colapso, ela tenta entender o que diabos está acontecendo enquanto observa a humanidade se comportando como um enxame consciente. O ponto alto da cena é quando ela liga a TV e descobre que a fusão mental não é local — é global.

Todo mundo virou um.

E ela continua sendo “ela”.

Gilligan sendo Gilligan: tensão, humanidade e desconforto inteligente

Mesmo no território da ficção científica, Gilligan não abre mão de seus brinquedos favoritos:

  • personagens empurrados à beira do abismo,

  • decisões morais impossíveis,

  • consequências que nunca vêm sozinhas,

  • e aquele suspense crescente que só ele sabe manipular.

A série Pluribus provoca um tipo de desconforto esperto: e se o coletivismo total eliminar a violência, a desigualdade e a dor? Talvez o “nós” seja mais eficiente que o “eu”. Gilligan cutuca o vespeiro com força.

Mas não se preocupe: o roteiro não vira manifesto. O foco é sempre a protagonista perdida no meio de um mundo onde ser indivíduo virou um crime existencial.

Referências? Claro que tem. Mas sem ser cópia barata.

Você percebe ecos de:

  • Os Borgs de Star Trek: A Nova Geração

    O famoso “Nós somos Borg. Resistir é inútil” encontra um primo distante aqui.
    Mas Pluribus não busca assimilação tecnológica — é um fenômeno biológico, quase espiritual.

  • Enxames de inteligência coletiva da literatura sci-fi

  • Thrillers de contágio como “Contágio” ou “12 Monkeys”

Mas o tempero Gilligan é inconfundível: ritmo crescente, tensão crescente, insanidade crescente. Nada de jumpscares bobos. É o terror do conceito.

Vale a pena assistir? Sim — mas vá com calma

Pluribus começa forte, com uma estética linda, fotografia calculada e aquele clima de “não pisque ou você perde o fio”. Mas… Gilligan também usa alguns truques de roteiro conhecidos para prender o espectador, especialmente perto do final do primeiro episódio. Não chega a estragar. Só entrega que tem algum fan service ali para garantir maratona.

A série promete reviravoltas grandes — e, conhecendo o diretor, pode esperar por decisões narrativas que vão te fazer xingar a TV e agradecer depois.

Por enquanto?
Vale dar uma chance.
É ficção científica com personalidade — e com o peso de um diretor que não brinca com público.

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